FOLHETIM | Uma rubrica de Licínia Quitério
DESVAIRADAS GENTES (3º. Episódio)
O Zeca com um pé na calçada, a Dona Amália com o avental dobrado em guardanapo a esconder algumas nódoas. O senhor António assomou à porta, porém sem transpor o degrau, não fosse algum malandreco aproveitar a distracção e, num abrir e fechar de olhos, botar a mão no alheio. E os gritos, agora já palavras perceptíveis:
– Eu tiro-te as tripas, malandro, meu porco sujo. Pela saúde dos meus filhos, juro que a matrafona há-de ficar marcada para o resto da vida.
Bonito! Hoje havia cinema à borla. Mas quem seriam os maus?
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Todos os membros da família (pai, mãe, filho e filha) eram baixotes, por isso mesmo nomeados na linguagem do bairro os “caga-tacos”. Barbeiro, o pai, de estabelecimento tomado de trespasse há muitos anos, depois que viera da terra no limite nordeste da fronteira galaico-portuguesa. No estendal da “marquise”, as roldanas chiavam com o desfile diário das toalhas do ofício, impecavelmente brancas, que gente asseada como aquela não havia muita nas redondezas. Os cabelos de toda a família estavam sempre impecáveis, miraculosamente ao abrigo de ventanias ou de gestos bruscos que os tirassem do lugar pré-determinado. O filho, conhecido por “o puto do barbeiro”, era uma reprodução exacta do pai, tanto nas feições como na postura e, naturalmente, no penteado, apenas com uma poupinha um pouco mais elevada como marca da sua menoridade.
Uma família tranquila, pouco ao jeito do bairro que gostava de alguns desalinhos, da sua marca de desordem controlada. Saíam e entravam sempre a horas certas. A mãe usava com garbo as arrecadas que lhe vinham do bragal. A vizinha do prédio contíguo era a que dialogava com ela mais assiduamente. A Natália vesga tinha na Felismina uma ouvinte pouco faladora, o que satisfazia plenamente a sua necessidade de debitar palavras em catadupa, enquanto lavava com a mangueira de plástico o terraço do rés-do-chão para onde as porcas lá de cima atiravam toda a casta de merda. As “porcas” arredavam a medo as cortinas e retiravam-se de pronto, porque não tinham vocabulário para a troca, nem físico que aguentasse um chapadão daquelas mãos habituadas a limpezas pesadas. Só o talho do Feliciano, para arrancar os ves-tígios de toda aquela carniça, a obrigava a esforços que nenhuma das donas “fúfias” aguentaria sem um chilique e uma baixa à enfermaria. E a conversa desfiava-se a competir com os latidos e os saltos autistas do cão enlouquecido pelos jorros de água da mangueira. Uma vez estendida a roupa e varrido o quintal das folhas secas da nespereira, a Felismina retirava-se com um “Até logo, vizinha”, sem um ritus que denunciasse estado de alma, por muito pobrezinho que fosse. Era uma mulher de cara-de-pau, passada dos quarenta, ainda com alguma elegância de formas, contida pela rigidez que lhe haviam ensinado ser indispensável à defesa da honra de uma mulher que não quer ser confundida com uma galdéria. Nos tempos que lhe sobravam (a mulheres como a Felismina sobram sempre tempos que preenchem furiosamente), fazia rendas e bordados em quadradinhos de pano que, com pequenos e habilidosos esticões, obrigava a terem ângulos precisos de noventa graus. Os quadradinhos iam-se juntando, em fiadas a que outras se casavam, e assim iam nascendo toalhas de mesa (duas delas davam mesmo para doze pessoas) que, depois de lavadas e engomadas, tomariam lugar nas duas arcas de madeira envernizada, cravejadas de tachas amarelas, compradas na Feira do Relógio.
(continua)